Correspondences - Charles Baudelaire


Correspondências 

A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam sair às vezes palavras confusas:
Por florestas de símbolos, lã o homem cruza
Observando por olhos ali familiares.

Tal longos ecos longe lá se confundem
Dentro de tenebrosa e profunda unidade
Imensa como a noite e como a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se transfundem.

Perfumes de frescor tal a carne de infames,
Doces como o oboé, verdes igual ao prado,
-Mais outros, corrompidos, ricos, triunfantes,

Possuindo a expansão de um algo inacabado,
Tal como âmbar, almíscar, benjoim e incenso,
Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.



Correspondences

La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et pronfunde unité,
Vast comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
-Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui Chantet le transport de l'esprit et des sens.

Charles Baudelaire

LIBERDADE (Voltaire)

Verbete do "Dicionário Filosófico"
LIBERDADE (DA)

A – Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de não a ouvir?

B – É claro que não posso evitar ouvi-la.

A – Desejaríeis que esse canhão decepasse vossa cabeça e as de vossa mulher e vossa filha que estivessem convosco?

B – Que espécie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia, em meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso me é impossível.

A - Muito bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente, não quereis morrer, vós e vossa família, de um tiro de canhão; não tendes o poder de não ouvi-lo nem o poder de querer permanecer aqui.

B - Isso é evidente

A - Em conseqüência, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhão: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos passos?

B - Nada mais verdadeiro

A - E se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar ficar exposto a essa bateria; não teríeis o poder de estar onde agora estais: teríeis então necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto?

B - Nada mais claro

A - Em que consiste, pois, vossa liberdade, se não está no poder de fazer o que a vossa vontade exigia com absoluta necessidade?

B - Embaraçais-me; então a liberdade nada mais é senão o poder de fazer o que bem entendo?

A - Refleti um pouco. Vede se a liberdade pode ser outra coisa.

B - Neste caso o meu cão de caça é tão livre como eu; ele tem necessariamente a vontade de correr quando vê uma lebre e o poder de correr se não estiver doente das pernas. "Eu nada tenho, pois, mais do que meu cão, reduzis-me ao estado das bestas"

A - Eis uma série de pobres sofismas dos pobres sofistas que vos instrtuíram. Eis que estais despeitado por não serdes livres como vosso cão. Ora, a sede, o velar, o dormir, os cinco sentidos, não são em vós como nele? Pretenderíeis cheirar com outro qualquer órgão além do nariz? Por que quereis uma liberdade diferente da que ele tem?

B - Porém eu tenho uma alma que raciocina muito bem, e o meu cão não pensa coisa alguma. Ele apenas tem idéias simples, enquanto eu tenho mil idéias metafísicas

A - Pois muito bem! Sois mil vezes mais livre do que ele, isto é, tendes mil vezes mais poder de pensar do que ele; porém vossa liberdade é perfeitamente igual à dele

B - Como? Eu não tenho a liberdade de querer o que desejo?

A - Que entendeis com isso?

B - O que toda gente entende. Não se diz diariamente: "As vontades são livres"?

A - Um provérbio não é uma razão, explicai-vos melhor

B - Penso que sou livre de querer como melhor me agradar

A - Com vossa licença, isso não tem o mínimo sentido; não percebeis que é ridículo dizer: "Eu quero querer"? Necessariamente, vós desejais em conseqüência das idéias que se vos apresentam. Quereis casar, sim ou não?

B - Mas se eu vos disser que não quero nem uma nem outra coisa?

A - Responderíeis como aquele que disse: "Uns pensam que o cardeal Mazarino está morto; outros, que está vivo; eu não creio nem nuuma coisa nem noutra"

B - Pois bem, quero casar-me

A - Isto é responder! Por que quereis casar?

B - Porque estou apaixonado por uma bela rapariga, bem-educada, muito rica, que canta muito bem, filha de pais honestos e que me ama, assim como sua família

A - Eis uma razão. Vedes, pois, que não podeis querer sem razão. Declaro-vos que tendes a liberdade de vos casar: isto é, que tendes o poder de assinar o contrato

B - Como! Eu não posso querer sem motivo? Que sucede então a este outro provérbio: Sit pro ratione voluntas: minha vontade é minha razão, quero porque quero?

A - Isso é absurdo, meu caro amigo, pois haveria em vós um efeito sem causa

B - Quê? Quando jogo par ou ímpar tenho então um motivo para escolher par em vez de ímpar?

A - Sim, sem nenhuma dúvida

B - E qual é esta razão, por obséquio?

A - É que a idéia de par se apresentou ao vosso espírito mais do que a idéia oposta. Seria muito cômico que nalguns casos desejásseis por existir uma razão para o vosso desejo e que noutros desejásseis sem motivo. Quando vos quereis casar, sentis a razão dominante, evidentemente; não a sentis quando jogais par ou ímpar, e contudo é mister que exista uma

B - Mas, uma vez ainda: sou ou não sou livre?

A - Vossa vontade não é livre, mas vossas ações o são. Tendes a liberdade de fazer quando tendes o poder de fazer.

B - Mas, todos os livros que li sobre a liberdade de indiferença...

A - São tolices: não existe liberdade de indiferença; é um termo destituído de senso, inventado por pessoas que não o possuem.

Da Liquidez Dos Relacionamentos


                                                                                persistences of memory - Salvador Dali

A magia romântica do amor dissolveu se na velocidade da vida dinâmica em que vivemos na vertiginosa era da alta tecnologia. Por temermos a proximidade com o outro, preferimos entao abrir mão das relações amorosas concretas para adentrarmos na dimensão das relaçoes virtuais. Conforme os dizeres de Zygmunt Bauman, “ e preciso diluir as relações para que possamos consumir las.”

O mundo virtual, que deveria proporcionar a aproximação entre os indivíduos, acaba então motivando ainda mais a ruptura interpessoal!

Dos Imortais I

Uma coisa que me impressiona além da notoriedade de um gênio, muitas vezes é a sua personalidade, seu caráter - digo isso por trabalhar também em meio artístico. É comum gerarmos em nossas ideias que o ídolo que admiramos é dotado de tamanha sensibilidade em sua arte, que te comove as vezes ate deixando em prantos por tamanho dom de tocar a sua alma. Mas em muitos casos somos nós quem construímos esses "heróis". É quando nos deparamos com um ídolo de cara podemos ter acesso a verdade, onde existe um contraste, nítido e absurdo, entre sensibilidade e insensibilidade, em tons de rudez e hostilidade, quando nos deparamos com a real proliferação que amana dentro desses seres magníficos que visávamos serem seres perfeitos dotados de uma sensibilidade descomunal. Existem muitos na historia, mas pra mim nenhum tão impressionante quanto Beethoven. "Os Relatos dos contemporâneos são implacáveis: para ele, o compositor era feio, malvestido e até repulsivo de tão sujo..." .*
Aparentemente ao conhecer Beethoven, (o meu escritor e poeta favorito), Wolfgang von Goethe comentou com um amigo: "Seu talento impressionou-me , mas infelizmente tem uma personalidade indomesticada. Não está de todo errado ao considerar o mundo repulsivo, mas sem dúvida não faz esforços para torná-lo mais agradável para ele ou para outros. Deve-se mostrar-lhe compaixão, pois está perdendo a audição, coisa que afeta menos seu lado musical que o social."*
Beethoven estendia sua sensibilidade para além das suas obrar atemporais. Existem relatos de cartas escritas por ele a sua intitulada "Amada Imortal" (nome até de um filme A Minha Amada Imortal).
Como romântico assumido, fã de Beethoven, e curioso por cartas intimas de meus ídolos, gostaria de compartilhar duas cartas que expressam (mais ainda) a sensibilidade que existia em sua alma, que transbordava no talento e se estendia materializando nas mãos desse gênio imortal que um dia andou por terra!


Ludwig Van Beethoven Sonata Para Piano n. 14 [Moonlight]




Manhã de 6 de julho [de 1812]

Meu anjo, meu tudo, meu ser. Apenas algumas palavras hoje, à lápis (o seu). Até amanhã a minha morada estará definida. Que desperdício de tempo. Por que [sinto] esta tristeza profunda quando a necessidade fala? Pode o nosso amor resistir ao sacrifício, em não exigir a totalidade um do outro? Pode mudar o fato de que você não é toda minha nem sou todo seu? Oh, Deus! Olhe para a beleza da natureza e conforte o seu coração com o que deve ser. O amor exige tudo e com razão. Assim, eu estou em você e você em mim. Mas você se esquece facilmente que preciso viver para mim e para você. Se estivéssemos completamente unidos, você sentiria esta dor tão próxima quanto eu sinto. A minha viagem foi terrível; só cheguei ontem às 4 horas da manhã, uma vez que na falta de cavalos, o cocheiro escolheu um outro caminho, mas que caminho terrível. Na penúltima parada fui avisado para não viajar à noite, fiquei com medo da floresta, e isso só me deixou mais ansioso – e eu estava errado. O cocheiro precisou parar na estrada infeliz, uma estrada imprestável e barrenta. Se estivesse sem os apetrechos que levo comigo teria ficado preso na estrada. Esterhazy, percorrendo este caminho habitual, teve o mesmo destino com oito cavalos que eu tive com quatro. Senti algum prazer nisso, como sempre sinto quando supero com sucesso as dificuldades. Agora uma rápida mudança das coisas externas para as internas. Provavelmente nos veremos em breve, mas hoje não posso compartilhar contigo os pensamentos que tive durante estes poucos dias dias sobre a minha vida. Se os nossos corações estivessem sempre juntos, eu não teria nenhum deles. O meu coração está repleto de coisas que gostaria de dizer-te. Ah. Há momentos que sinto esse discurso não ser nada. Alegre-se. Você permanece [sendo] a minha verdade, o meu tesouro, o meu tudo como eu sou o teu. Os deuses devem nos mandar o restante, aquilo que deve ser para nós e será.
 Seu fiel Ludwig.


Bom dia, em 7 de julho [de 1812]

Embora ainda esteja na cama, os meus pensamentos vão até você, minha Amada Imortal, agora felizes, depois tristes, esperando para saber se o destino nos ouvirá ou não. Eu só posso viver completo contigo ou não viver. Sim, estou decidido a vaguear assim por muito tempo longe de você até que possa voar para os seus braços e dizer que estou em casa, e poder enviar a minha alma envolta em você ao reino dos espíritos. Sim, isto deve ser tão infeliz. Você será mais contida quando souber da minha fidelidade à você. Outra jamais poderá ter o meu coração, nunca, nunca, Oh, Deus! Por que um precisa estar separado do outro quando se ama. E, no entanto, a minha vida em Viena é agora uma vida miserável. O teu amor me faz ao mesmo tempo o mais feliz e infeliz dos homens. Na minha idade eu preciso de estabilidade, de uma vida tranqüila. Pode ser assim na nossa relação? Meu anjo, acabo de ser informado que o carteiro sai todos os dias. Por isso devo terminar logo para que você possa receber a carta logo. Fique tranqüila, somente através da consideração tranqüila de nossa existência podemos atingir o objetivo de vivermos juntos. Fique tranqüila, me ame, hoje, ontem, desejos sofridos por você, você, você, minha vida, meu tudo, adeus. Oh, continue a me amar, jamais duvide do coração fiel de seu amado.
Sempre teu
Sempre minha
Sempre nosso.


*fonte tirada da revista Bravo 100/Música Erudita

Pensamentos Rimados Num fim de Tarde


Vi esse poema em uma certa revista já extinta, meio elitizada ate, gostei muito desses versos, só que na revista não vinha o nome do autor, infelizmente! Acabou se tornando um dos meus poemas preferidos, vira e mexe eu o leio, resignado e esperançoso.
Eugene Lushpin - Twilight in Amsterdam

Pensamentos Rimados Num fim de Tarde

Não Existe um futuro sem dor do passado,
Nem fontes de amor que não tenham secado
Ou planos, que mesmo tão bem planejados
Não tenham destinos ou fins alterados.

É longo o caminho que corre sem volta
E estreito o limite que o tempo suporta
No trato da vida bem menos vivida
Do que se esperava por ser merecida.

Na estrada comprida, no adeus despedida
Nos olhos molhados, na mão estendida
Ainda restam imagens já quase esquecidas
Mas mesmo na névoa, ainda bem definidas

Vi o hoje passado, o ontem sumido,
As noites, as tardes, ao não resistindo
Como se retivessem o compasso das horas
Que passam ao meu largo, qual velas de um barco.
E levam as lembranças dos tempo antigos,
Nos ventos e acenos dos velhos amigos.

Trechos de: Diário De Um Sedutor - Kierkegaard





"...Ele não pertencia à realidade e, no entanto tinha muito a ver com ela. Passava sempre acima da realidade, e mesmo quando mais lhe entregava, estava longe dela. Mas não era o bem dela que o afastava e, no fundo, também não o mal ...


Ele não fraquejava à gravidade da realidade, não era excessivamente fraco para a suportar, nao, era antes demasiado forte; mas esta força era uma doença. Logo que a realidade perdia a sua importância como estimulante, ficava indefeso, e nisso consistia o mal que o habitava. Tinha plena consciência deste fato, mesmo no momento do estímulo, e o mal estava nessa consciência...


...Parece ter sido ainda experimentado num tipo de experiência que o define perfeitamente bem; pois ele era, de uma forma extrema, intelectualmente determinado para ser um sedutor 

Vulgar"

"...a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação."





Michelangelo - A Criação Do Homem(Deus na forma Humana)



"Durante toda nossa vida, enfrentamos decisões penosas... escolhas morais. Algumas delas tem grande peso. A maioria não tem tanto valor assim. Mas definimos a nós mesmos pelas escolhas que fizemos. Na verdade, somos feitos da soma total das nossas escolhas. Tudo se dá de maneira tão imprevisível... tão injusta que a felicidade humana não parece ter sido incluída no projeto da Criação. Somos nos com nossa capacidade de amar que atribuímos um sentido a um Universo indiferente. Assim mesmo a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de continuar lutando e até de encontrar prazer nas coisas simples como sua familia, seu trabalho e na esperança que as futuras gerações alcancem uma compreensão maior." (em uma revista de filosofia qualquer, jogada pela minhas coisas)


                           Bach - Christiane Jacottet, cravo Variações Goldberg (variação 23)

L'amour est un oiseau rebelle ... Carmen (avec coeur)

Tive um sonho, meio maluco com essa música hoje, acordei com ela na cabeça, não sei o significado deste sonho que tive, mas gosto muito dessa parte. alias qualquer devaneio sobre o amor me atrai, contado ou declamado, e essa é histórica, Bizet marcou o mundo com essa parte.
escolhi cantada pela Maria Callas, que acho linda interpretação.




Carmen (avec coeur)                                              Carmen (com ardor)

L'amour est un oiseau rebelle                                  O amor é um pássaro rebelde
Que nul ne peut apprivoiser,                                   que ninguém pode aprisionar
Et c'est bien en vain qu'on l'appelle                          e que não adianta chamar
S'il lui convient de refuser.                                       se a ele convém recusar.
Rien n'y fait, menace ou prière,                               De nada valem ameaças e pedidos,
L'un parle bien, l'austre se tait;                                dizer coisas bonitas ou se calar,
Et c'est l'autre que je préfère                                   se eu preferir um outro
il n'a rien dit, mais il me plaît.                                   ele nada me diz, e é dele que gosto.
L'amour... l'amour...                                               O amor... o amor...
L'amour est enfant de Bohême,                               O amor é um menino cigano,
il n'a jamais connu de loi                                         que nunca conheceu qualquer lei;
Si tu ne m'aimes pas, je t'aime;                                se você não me ama, eu te amo; e seu te
Si je t'aime, prends garde à toi!...                            amo, toma cuidado!...
L'oiseau que tu crovais surprendre                          O pássaro que você acreditava surpreender
Battit de l'aile et s'envola...                                      bateu as asas e voou...
L'amour est loin, tu peux l'attendre;                         O amor está longe, você pode esperar;
Tu ne l'attends plus, il est là!                                   você não espera, ,ele está ai...
Tout autour de toi, vite, vite,                                   Tudo à tua volta, rápido, rápido,
Il vient, s'en va, puis il revient...                               ele vem, ele vai, e logo volta...
Tu crois le tenir, il t'évite,                                        Se você pensa ter agarrado o amor, ele te
Tu veux l'éviter, il te tient.                                       evita, e se pensa evitar, ele te prende.
L'amour, l'amour...                                                 O amor... o amor...

Cântico Negro


Esse poema, foi me mostrado pela Muriel, amante da literatura e poesia como eu, afinidade que nos permite compartilhar o que de verdade é muito tocante. Obrigado pelo presente Muriel, desconhecia tal autor, que agora me interesso mais pela sua obra!


     
    Cântico negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio


                                                    Jacob wrestling with the Angel ; Gustave DORÉ; 1865


José Régiopseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

O inicio

Queria começar pelo meu preferido, o homem que se aprofundou nas obscuras incertezas da natureza humana, e de uma forma delicada, nos traduziu com impeto e volúpia, os tempestuosos labirintos do ser!


      Surrealismo - Vladimir Kush




"...Acontece com o futuro o mesmo que com as coisas que estão longe. Um imenso obscuro horizonte se estende diante de nossa alma; perdem se neles os nossos sentimentos, bem como os nossos olhares, e ardemos, sim ! Do desejo de dar tudo o que somos para saborear plenamente as delícias de uma sentimento único, enorme, sublime... E quando chegamos lá, quando o distante se tornou aqui, tudo é o mesmo que antes continuamos na miséria, na nossa esfera restrita, e a nossa alma suspira pela aventura que lhe escapou."
J. W. Goethe - Sofrimentos do Jovem Werther